segunda-feira, 25 de maio de 2015
MPT aciona Justiça contra governo por calamidade humanitária de imigrantes
O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou na manhã desta segunda-feira (25), na 2ª Vara do Trabalho de Rio Branco, uma ação civil pública inédita para exigir do governo federal a adoção de políticas públicas para efetivo acolhimento das pessoas que ingressam no país mediante solicitação de refúgio.
Nos últimos cinco anos, o Acre é a porta de entrada de fluxo migratório contínuo e crescente de estrangeiros “endividados e transtornados” que percorrem a rota Haiti-Brasil, após passagem pela República Dominicana, Panamá, Equador, Bolívia e Peru.
“Temos, no Acre, uma situação de calamidade humanitária de imigrantes caribenhos e africanos que ingressam em território brasileiro em busca de trabalho. O espírito de nossa ação é federalizar as políticas públicas de acolhimento aos trabalhadores migrantes e adoção de medidas eficazes de combate ao tráfico de pessoas pelo governo federal”, afirmou o procurador-chefe do MPT em Rondônia e Acre, Marcos Cutrim, em entrevista exclusiva.
As rotas clandestinas de acesso ao Brasil, pelo Estado do Acre, estão a alimentar uma rentável rede de tráfico internacional de pessoas, que alavanca o comercio ilegal de arregimentação ilícita de imigrantes, de acordo com investigação do MPT.
Tendo sua vontade anulada pela situação de penúria em que se encontram, acrescenta o MPT, os imigrantes apresentam-se como presas fáceis dos exploradores inescrupulosos que hoje atuam nos países de origem, trânsito e de destino.
Preocupava o MPT as informações obtidas nos abrigos de estrangeiros improvisados no Acre nos últimos cinco anos, marcados por falta de políticas públicas adequadas para os trabalhadores migrantes e sua famílias.
Outro foco de preocupação foi a ocorrência das mais perversas formas de contratação pelas empresas do centro-sul do país, que se dirigiam ao Estado em busca de mão de obra haitiana e de outras nacionalidades.
Os trabalhadores eram selecionados entre homens jovens, por exemplo, pelo porte físico, espessura da canela, condições da genitália e idade inferior a 38 anos.
No Acre, os imigrantes são recebidos em um acampamento público, improvisado como abrigo, “mantido” pelos governos federal e estadual. Essa estrutura assegura a regularização e preparação deles como força de trabalho apta a seguir viagem e ingressar de modo particularmente precarizado no mercado laboral brasileiro.
Ao longo dos últimos cinco anos de fluxo migratório constante pela fronteira acreana, via redes de tráfico e coiotagem, não se observou nenhum debate e ação contundente por parte do governo brasileiro e dos demais países fronteiriços.
A omissão favorece a ramificação dessas redes pelo Acre e pelo Brasil, por meio de agentes que, estabelecidos no território nacional, incluindo as dependências do abrigo de imigrantes em Rio Branco, passaram a assegurar a articulação de informações necessárias para a manutenção do fluxo e do importante negócio que ele representa.
Até abril, 37,3 mil imigrantes haitianos, senegaleses e de outras 13 nacionalidades, desde 2010, ingressaram no Brasil a partir da fronteira com Bolívia e Peru, segundo dados do governo do Acre. Até setembro do ano passado, de acordo com a Polícia Federal, 39 mil haitianos haviam entrado no país, tanto pela via considerada legal como pela via ilegal.
“Nesse norte, (re)ordenar esse fluxo migratório, tornando condizente com a política internacional de proteção do homem-migrante, de modo a estancar a ação desses intermediadores, arregimentadores, aliciadores, “coiotes”, contrabandistas e traficantes internacionais de pessoas, é medida essencial a ser alcançada pela presente ação coletiva. A não ser assim, a decisão judicial favorável que vier a ser concedida servirá tão somente como elemento contemporizador das drásticas consequências oriundas desse mal originário, que é o tráfico internacional de pessoas”, argumenta o MPT.
Pesquisadores que acompanham os desdobramentos do fenômeno na Amazônia têm alertado sobre o custo em pagamentos à rede de tráfico e corrupção estruturada com o movimento migratório via Acre nos últimos cinco anos.
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que realizou missão com seus oficiais e analistas, percorrendo a rota desde o Haiti até o Acre, estima que o fluxo migratório já movimentou US$ 60 milhões. Cada imigrante, em média, paga de US$ 2 mil a US$ 5 mil à rede internacional de tráfico humano e coiotagem.
Encabeçada pelo procurador-chefe do MPT em Rondônia e Acre, Marcos Cutrim, a ação civil pública tem ainda como signatários os procuradores do Trabalho Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, Jonas Ratier Moreno, Luiz Carlos Michele Fabre, Renata Vieira Coelho e Cícero Rufino Pereira. Eles pedem à Justiça do Trabalho que o governo federal “seja condenado liminar e definitivamente”.
A ação civil pública, com mais de 1,8 mil páginas, reúne 35 documentos. Um dos mais relevantes, escrito a pedido do MPT, é o relatório de campo da professora Letícia Mamed, da Universidade Federal do Acre (Ufac), que desenvolve pesquisa de tese na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre a recente migração haitiana para o país.
Cutrim, que acompanha desde 2012 a situação dos imigrantes de passagem pelo Acre, por diversas vezes visitou os abrigos, em Brasileia e Rio Branco, e realizou ações de articulação interinstitucional. Ele participou de reuniões no Conselho Nacional de Imigração (CNig), nos anos 2013 e 2014, no intuito de propor soluções extrajudiciais sobre a crise migratória em curso no Acre.
“Já naquela ocasião constatou-se a necessidade do governo federal assumir a gestão dos abrigos do Acre, bem como do serviço de intermediação de mão de obra, pois é dele a responsabilidade pela definição da política migratória. No entanto, as ações tem se limitado a permitir o acesso”, afirma o procurador-chefe do MPT em Rondônia e Acre.
Segundo Cutrim, apesar de amplos debates no CNig, o governo federal não se mostrou capaz de dar um passo além. “O efetivo acolhimento dos trabalhadores não tem sido assumido por nenhum órgão público, salvo o governo do Acre, que até esse mês geriu as ações humanitárias de acolhida imediata. Todo o mais foi relegado a ONGs como as Pastorais do Migrante, sem uma postura decisiva do governo federal”, critica o procurador.
Na avaliação de Cutrim, a gestão do abrigo no Acre começou a falhar novamente no início deste ano, e, em razão do agravamento das condições precárias do ambiente, um grupo de procuradores do Trabalho decidiu por priorizar a atuação na questão, definindo-se a proposição de ação civil pública.
“Assim, justamente no momento em que os Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul ficam alarmados com reaparecimento de ônibus cheios de trabalhadores com pedido de refúgio, gerando discussões inócuas sobre quem avisou ou quem deixou de avisar, o MPT comparece para mostrar seu posicionamento, amadurecido por quase dois anos de reflexão”, acrescentou Marcos Cutrim.
Pesquisa documental da professora Letícia Mamed confirma proporcionalidade direta entre o volume do fluxo migratório e o valor total das remessas dos imigrantes haitianos aos seus parentes que permanecem no Haiti. As remessas dos imigrantes superam as exportações haitianas, sendo o país o oitavo mais dependente de remessas externas do mundo, algo que representa entre 20 e 25% do seu PIB.
Mais de um terço da população adulta do país recebe remessas regulares, sendo a maior parte proveniente dos Estados Unidos. Com a intensificação da imigração após o sismo de 2010, dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento indicam que o volume delas apresenta-se em crescimento: em 2010 era de apenas US$ 1,3 bilhão; em 2011, foi de quase US$ 2,1 bilhões; em 2012, alcançou US$ 1,82 bilhões. Ainda não existem dados específicos divulgados das remessas dos imigrantes para o Haiti a partir do Brasil.
Conheça os dez pedidos do MPT à Justiça do Trabalho:
1) Instituir, no prazo de dias, um serviço gratuito adequado incumbido de prestar auxílio aos trabalhadores migrantes e, especialmente, assumir a gestão financeira e institucional do(s) abrigo(s) social(is) localizado(s) no Estado do Acre e atualmente destinado(s) a albergar contingente de trabalhadores imigrantes de diversificadas nacionalidades, sobretudo caribenhos (haitianos e dominicanos), africanos (senegaleses) e asiáticos, garantindo condições materiais de subsistência e acomodação dignas, salubres e não degradantes, enquanto permanecerem em situação de documentação e trânsito naquele Estado;
2) Garantir, no prazo cinco dias, atendimento médico por profissionais especializados com conhecimento das doenças endêmicas das regiões de procedência dos trabalhadores que acedem ao Brasil pela rota do Acre;
3) Assumir, no prazo de cinco dias, por meio de seus órgãos públicos (Força Aérea Brasileira, por exemplo) ou através do fretamento de ônibus, nos termos da Lei 8.666/1993 e legislação pertinente, o transporte interestadual de trabalhadores migrantes para que possam reestruturar suas vidas em nossa sociedade e em grandes centros onde haja demanda por mão de obra, contribuindo para a proteção e promoção de seus direitos fundamentais, e de modo a evitar a superlotação do(s) Abrigo(s) de Estrangeiros existente(s) no Estado do Acre;
4) Assumir, no prazo de cinco dias, o serviço de encaminhamento para o emprego (Sistema Nacional de Emprego – SINE), que neste caso é de alçada federal, porque conexo com a política migratória humanitária brasileira, mediante a criação de unidades de atendimento que realizem as atividades necessárias à prevenção da vitimização dos trabalhadores e empregos de qualidade duvidosa;
5) Comprovar em Juízo, no prazo de 90 dias, a assunção plena de ações estatais de recepção, documentação, inserção no mercado de trabalho, assim como capacitação e disponibilização de pessoal técnico e correspondentes estruturas operacionais destinados ao atendimento do trabalhador imigrante. Sucessivamente, caso não seja cumprida a obrigação descrita no sobredito item “4”, postula-se a fixação judicial, segundo prudente arbítrio e sob critérios de razoabilidade e proporcionalidade, da universalidade das sobreditas ações político-administrativas, inclusive instituindo-se os executores das precitadas ações/tarefas, sob a vigilância do Ministério Público do Trabalho;
6) Destacar nas subsequentes Leis Orçamentárias Anuais, percentual mínimo de recursos do orçamento público federal, que deverá ser destinado às ações de acolhimento de trabalhadores migrantes em situação de vulnerabilidade e seus familiares;
7) Realizar ações concretas para coibir o trafico internacional de pessoas (trabalhadores imigrantes), mediante efetiva mobilização da Polícia Federal e dos órgãos responsáveis pela cooperação jurídica internacional, para a concretização de ações de investigação e punição dos responsáveis (“coiotes”, traficantes e contrabandistas) pela gestão das rotas terrestres;
8) Realizar ações concretas para coibir o tráfico internacional de pessoas (trabalhadores imigrantes), mediante efetiva mobilização nos serviços diplomáticos, para coibir a consolidação ou criação de novas rotas de entrada no país que impliquem a vulneração da dignidade do trabalhador migrante;
9) Indenizar a sociedade no valor de R$ 50 milhões por dano moral coletivo, na forma do artigo 13 da Lei de Ação Civil Pública, cujo montante será destinado futuramente à promoção de políticas públicas de acolhimento para trabalhadores migrantes portadores de visto humanitário, a serem indicadas oportunamente pelo Ministério Público do Trabalho, no decorrer da tramitação da ação civil;
10) Fixar, pelo descumprimento da decisão antecipatória e da decisão definitiva, o pagamento de multa diária no valor de R$ 100 mil por obrigação descumprida, cuja destinação deverá atender, na máxima medida possível, a reconstituição dos bens jurídicos lesados, a critério do Ministério Público do Trabalho.
Imigrantes são vítimas de roubos, cárceres, espancamentos, estupros e mortes
No denso e detalhado relatório de campo que a professora Letícia Mamed produziu para o MPT e que a reportagem teve acesso, consta que do Haiti ao Brasil, os imigrantes pagam, em média, de US$ 2 mil a US$ 5 mil pela viagem em grupos até o Acre. Ao todo, a viagem do Haiti ao Brasil tem uma duração média de 15 dias a 20 dias, podendo, em alguns casos, se estender até mais de um mês.
Os imigrantes saem, em sua maioria, da capital haitiana, Porto Príncipe, e seguem de ônibus até Santo Domingo, capital da República Dominicana, que fica na mesma ilha, onde compram passagem de avião ou barco e seguem até o Panamá. Da Cidade do Panamá, prosseguem de avião para Quito ou Quayaquil, as duas maiores cidades do Equador.
Ao desembarcarem no Equador, os imigrantes passam pelo serviço de fiscalização do aeroporto como turistas, se reorganizam durante alguns dias e seguem em viagem para Lima, capital do Peru, em ônibus ou veículo fretado, segundo alguns relatos, com trechos percorridos a pé.
Nesse percurso, evitam a cidade peruana de Tumbes, na fronteira entre Equador e Peru, onde há o serviço policial de migração dos dois países. Para tanto, os coiotes conduzem os grupos de imigrantes por rotas alternativas (florestas, ramais, travessia de rios a nado) até o ingresso em território peruano.
No Peru, passam pelas cidades de Mâncora, Talara, Piura, Chiclayo, Trujilo, Chimbote, Huaraz, até chegarem a Lima, após viagem terrestre com duração, em média, de 25 a 30 horas. Em Lima, também há uma reorganização da viagem durante alguns dias, mas ela segue por via terrestre, pela rodovia Interoceânica, responsável pela ligação do Peru ao Brasil.
Partindo de Lima, passam por Cusco e chegam a Puerto Maldonado, capital do departamento de Madre de Dios, que faz fronteira com o Acre. A viagem de Lima até a fronteira dura cerca de 25 horas. Em Puerto Maldonado, os coiotes definem o prosseguimento em táxi ou em carros alugados, que levam os imigrantes até Iñapari, cidade peruana separada de Assis Brasil (AC) pelo Rio Acre. Nesse trecho a viagem dura mais quatro horas.
No Posto Alfandegário de Assis Brasil, na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia, os imigrantes se apresentam ao serviço de controle migratório da Polícia Federal, para registrar em seus passaportes a data de ingresso em território brasileiro.
Após isso, pela mesma rodovia Interoceânica, seguem até as cidades gêmeas de Epitaciolândia e Brasiléia, onde existe a delegacia de Polícia Federal responsável pela região de fronteira, unidade na qual dão entrada à solicitação de refúgio. De Epitaciolândia até Rio Branco, onde existe um abrigo, são 235 quilômetros na BR-317, e os imigrantes enfrentam mais duas ou três horas de viagem de táxi.
Sem dinheiro, alguns percorrem parte do trecho a pé pedindo carona. Excetuando os haitianos, os imigrantes das demais nacionalidades, que não se beneficiam do visto humanitário, fazem o mesmo percurso fugindo da fiscalização. Quando chegam em Rio Branco, os imigrantes buscam a sede da Superintendência da Polícia Federal para se regularizarem e seguir viagem para outras regiões do país.
Até abril de 2014, estava sediado na cidade de Brasileia o acampamento público de acolhida dos imigrantes. Entretanto, após a mudança dessa estrutura de serviço para Rio Branco, depois de passarem pela PF, os imigrantes se dirigem até o novo endereço do abrigo.
“O trecho da viagem pelo território peruano, além de ser o mais longo, também é indicado pelos entrevistados como o mais perigoso, em razão das práticas de extorsão contra os imigrantes. De acordo com inúmeros relatos e denúncias, agentes da própria polícia peruana, associados a informantes, coiotes e motoristas, compõem essa rede de tráfico e corrupção, assegurando a dinâmica migratória pela região”, assinala a professora Letícia Mamed.
Em relatos mais pontuais sobre a viagem, imigrantes lembram que nesse trecho muitos se tornam vítimas de roubo, cárcere, espancamentos, estupros e até mortes, situação que é agravada pelo desconhecimento da rota, do idioma local e especialmente pela condição de indocumentados. “Assim, ao chegarem ao Acre, muitos apresentam problemas de saúde decorrentes da longa viagem e estão psicologicamente transtornados pela violência que sofreram no caminho”, acrescenta a professora.
Letícia Mamed assinala que a consolidação da rota migratória inaugurada pelos haitianos até o Acre despertou a chegada de imigrantes de outros países ao acampamento montado em Rio Branco. Segundo dados oficiais divulgados recentemente, 13 diferentes nacionalidades, além do Haiti, possuem registro de passagem pelo local: Bahamas, Bangladesh, Camarões, Colômbia, Cuba, Equador, Gâmbia, Gana, Mauritânia, República Dominicana, Senegal e Serra Leoa. “Mas, independente das rotas percorridas, todos chegam em grupos e a partir do contato com as redes de tráfico de pessoas”, afirma a pesquisadora.
Ela destaca a presença dos imigrantes advindos do continente africano, especialmente os senegaleses, cujo número vem crescendo de modo considerável desde o ano de 2013, fazendo deste o segundo maior grupo de estrangeiros presentes no Acre.
Entretanto, embora a chegada ao Acre seja, em grande parte, pela mesma rota entre Equador, Peru e Brasil, e todos sejam recebidos igualmente no acampamento de imigrantes, a convivência entre eles nem sempre é cordial e solidária.
A rota percorrida pelos imigrantes africanos inicia de avião, em Dakar, capital senegalesa, e inclui escala em Madri, na Espanha, e prossegue para o Equador. Ao chegarem em Quito ou Guayaquil, os imigarantes passam então a seguir a mesma rota dos haitianos até o Acre, via Interoceânica.
FONTE.altinomachado
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